O tema do IV Colóquio, “Destinos das análises”, destaca um conceito importante, mas pouquíssimo discutido entre os analistas. Talvez a pouca produção em torno do conceito de destino deva-se ao fato de ele não se constituir um conceito psicanalítico. Entretanto, além de fazer parte da história da psicanálise desde Freud, apresenta-se de maneira incisiva em sua obra e no ensino de Lacan, compondo inúmeras reflexões sobre os conceitos fundamentais e a prática analítica, onde se verifica uma verdadeira subversão conceitual.
Em Édipo Rei, Édipo de Colona, Antígona, dentre outras peças, o destino é traduzido como inelutável, imutável, previsto no drama a ser vivido pelo herói. Força ou poder capaz de dirigir e governar a vida humana, o trágico do destino não deixa espaço à concepção psicanalítica de sujeito. É outra a via seguida por Freud e Lacan.
Freud expõe inúmeras variações clínicas com a categoria de destino, associando-o à diferença sexual anatômica, à neurose de destino, às pulsões e seus destinos (1914) , à voz do supereu, o destino do pai, marcando ainda uma ligação intrínseca e fundamental com o recalque originário e a repetição.
Em A interpretação dos sonhos (1901) Freud interroga-se porque as tragédias gregas comovem tanto a platéia, inclusive do mundo moderno. Para ele, mais do que a separação entre destino e vontade humana, o material utilizado na tragédia desperta “uma voz” pronta a reconhecer a força compulsiva do destino que poderia ter sido o nosso. Portanto, algo da fantasia se realiza no trágico, deixando o sujeito protegido de sua angústia. A definição freudiana de “neurose de destino” segue essa perspectiva, válida para todo neurótico, de buscar, diante do sintoma e mal-estar, uma fatalidade externa, desresponsabilizando-se por aquilo de que se queixa e que o faz sofrer.
Em 1917, ao criticar o destino na tragédia, ele afirma: “(…) uma peça imoral que anula a responsabilidade ética do homem, mostra poderes divinos como mandantes de um crime e apresenta a impotência dos impulsos morais humanos que se insurgem contra esse crime”.[1] No laço entre destino (Schicksal), sujeito e a responsabilidade ética, Além do princípio do prazer (1920)traça uma rigorosa junção entre destino e compulsão à repetição (Schicksalszwang), demonstrando que a “força demoníaca” do destino trágico, tão temido pelo sujeito, reside no que foi primevamente recalcado. A implicação do sujeito com seu destino traz o selo de uma falha original. Este é um ponto importante ao nosso debate.
O destino, afirma Freud no artigo supracitado, é algo preparado, arranjado, arquitetado pela própria neurose. Junto à força do automaton pulsional, existe o fortuito, o acidente do bom ou mau encontro com o real (Tiquê) nas diversas traduções que cada sujeito oferece ao inarticulável do destino. Em 1926, Freud afirma que os desdobramentos da força pulsional dependem de “como este ser adulto será tratado pelo destino” [2]. Ou seja, depende do que foi primevamente recalcado e os recursos do sujeito para tratar o encontro com o real.
Seguindo uma via similar a Freud, Lacan aborda, nos anos 50, articulações entre destino, automatismo da repetição e responsabilidade subjetiva que servirão depois de suporte à fundamentação de seu seminário sobre a ética da psicanálise.
Em “Psicanálise e criminologia” (1950), por exemplo, ele critica o uso da noção de “figuras do destino” para explicar a repetição no ato criminal, ao desconsiderar nesses casos a importância da satisfação pulsional. No Seminário 2 encontramos uma pista importante sobre esse ponto: “A questão do sujeito não se refere absolutamente ao que pode resultar de tal desmame, abandono, falta vital de amor ou de afeto, ela concerne sua história visto que ele a desconhece (…) Sua vida é orientada por uma problemática que não é a de sua vivência, porém, a de seu destino, isto é – o que será que sua história significa?”[3]
Na via que liga o trágico do destino à repetição e à responsabilidade do sujeito, Lacan faz de Antígona o fundamento da ética da psicanálise. Ela é a figura que faz corte à “compulsão do destino”, inaugurando um saber sustentado por um desejo e uma escolha. “Sabê-lo, isso faz uma diferença. Isso não nos permite colocar-nos no exterior, nem ao sujeito ficar de lado (…). O fato de saber ou não saber é, pois, essencial à figura do destino” [4].
O Seminário 11 introduz outra visada sobre o destino na releitura de Tichê e Automaton de Aristóteles. O inconsciente é definido como algo não realizado, buraco, vazio. Há uma determinação simbólica ou significante, mas há uma determinação real, um destino que deixa sempre algo por escrever. Isto me remete a uma reflexão que se encontra, anos mais tarde, em Joyce, o sintoma: “Nós fazemos nosso destino porque nós falamos. Nós cremos que dissemos isso que queremos, mas é isso que quis os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala. (…) nós somos falados, e por causa disso, nós fazemos, temos chances, algo tramado. Com efeito, há uma trama – nós chamamos isso de nosso destino”[5].
Como o real, fora de sentido, o destino assemelha-se a essa trama que o analisante percebe como fora do contexto. A função do analista é então de introduzir, diríamos com Lacan (1959),o destino aliado à experiência trágica da vida e sua responsabilidade ética, sustentada na ausência de harmonia entre desejo, realização e satisfação.
Tudo depende então do que o sujeito possa fazer com sua determinação, no encontro analítico com esse sujeito real, não encontrado freqüentemente (ser falante),marcado pelo destino do recalque originário. Se há algo a ser encontrado em uma análise, dirá Lacan, é o destino. Isso que não cessa de não se escrever, marca de duas negativas, impossível de ser dito ou reconhecido, umbigo do sonho em Freud, talvez possa ser uma boa definição lacaniana de destino, posto que no final de seu ensino o inconsciente real é definido como fora de sentido. Nesse limite, nesse encontro, um dos destinos de uma análise pode ser o seu fim. Mas nem sempre. De todo modo se “toda carta chega ao seu destino”, as análises, se elas funcionam, tocam alguma face do destino ao confrontar o sujeito com seu dizer e sua responsabilidade ética.
Referências Bibliográficas
Freud, S. A interpretação dos sonhos [1900-1901]. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1972. IV.
——— As pulsões e suas vicissitudes [1915]. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.
——— Conferência XXV [1917]. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVI.
——— Além do princípio do prazer [1920]. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVIII.
——— A questão da análise leiga [1926]. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XIX.
Lacan, J. Introdução Teórica às funções da psicanálise em criminologia. In Escritos. RJ, Jorge Zahar, 1998.
——–. O seminário. Livro 2 ( 1954-1955). O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. RJ, Zahar, 1985.
——–. O seminário. Livro 8 ( 1960-1961). A transferência. RJ, Jorge Zahar, 1992.
——–. O seminário. Livro 11 (1964). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
——–. Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI. In : Autres écrits. Éditions du Seuil. Paris, 2001.
Janeiro de 2019
* Ângela Mucida é psicanalista em Belo Horizonte, Mestre em Filosofia, Doutora em Psicanálise/UFMG, AME da EPFCL, membro da IF-EPFCL Fórum Nacional Rede Diagonal Brasil
[1] -Freud, 1917/2014, p. 440), grifos meus.
[2] -Freud, 1926/2014, pp. 205-206.
[3] -Lacan, 1954-55/1985, p. 61.
[4] – Lacan, 1960, p.312.
[5] -Lacan.Conférence em Sorbonne -16 junho de 1975- Abertura do 5e Symposium international James Joyce. Texte établi par Jacques-Alain Miller, à partir des notes d’Éric Laurent. [5] L’âne, 1982, n° 6.[5]