Adriana Rezende Costa
A abordagem de um conceito de criança encontra lugar na clínica psicanalítica? Penso que como todo sujeito em análise, a criança é sujeito do inconsciente, afetada pelo significante, estruturando-se na linguagem e em uma lógica referida ao tempo, não à idade. O sujeito que interessa à psicanálise, portanto é o sujeito que fala e ao falar produz significantes, ou seja, produz a matéria na qual emerge a interpretação e que sustenta a prática clínica[1] (1).
Há, portanto, uma materialidade que se coloca como objeto da psicanálise, e é nela que a nossa prática vai incidir seja qual for o seu campo de inserção, clínica com crianças, adolescentes ou adultos. Desse modo, é do sujeito do inconsciente que tratamos, mas isso não nos autoriza a desconsiderar as especificidades concernentes a diferentes momentos cronológicos da existência desses sujeitos.
No que diz respeito ao sujeito na infância, este comparece com a marca do lugar que ocupa no desejo do Outro e de seu assujeitamento a uma expectativa futura que lhe está sendo antecipada. No entanto, há também que se levar em conta as incidências concernentes aos tempos lógicos de seu processo de constituição, conferindo uma marca singular à maneira como cada sujeito vai dar conta de sua alienação. Com isso, quero ressaltar que não é de um tempo cronológico que se trata quando falamos da criança em psicanálise, porém não podemos prescindir das referências específicas que o tempo da infância imprime no que concerne à sua constituição e que vão permear o seu discurso e sua fala.
Pensando nos sintomas que se apresentam na clínica, observamos que as relações familiares, suas amarrações e modalidades de gozo, prevalecem na fala dos pacientes em análise. Porém, tanto o adulto que fala de um pai, mãe ou avó, quanto a criança que é falada por eles nos leva a indagar do que é que se fala quando se fala da família e ainda de forma mais radical, o que é que se escuta? Seria então, na dinâmica familiar que se deve buscar algo sobre a formação do sintoma? De acordo com Gerbase (2015), “em vez de procurar na relação entre pais e filhos, deve-se procurar na relação do sujeito com o significante, ou localizar o ato de fala performativo que determinou a formação do sintoma”[2] .
Ao mesmo tempo, sabemos com Lacan[3] que o sintoma na criança busca responder ao que há de sintomático na estrutura familiar, o que leva o analista a indagar o lugar ocupado pela criança na fantasia parental. Assim, relação do sujeito com o significante sofre incidências decorrentes da forma como é veiculado no discurso parental. É nessa perspectiva a meu ver, que se deve escutar também os pais em análise de crianças.
Ao longo de sua obra Freud se voltou para o que se revelava no âmbito das experiências infantis dos neuróticos, mas o que destacou daí, mais do que uma neurose infantil, foi uma sexualidade infantil. Isso nos leva a apontar que a criança deve encontrar um Outro que lhe signifique o desejo sexual viabilizando os efeitos da metáfora paterna. Hans não encontrou o que deveria lhe situar frente ao desejo. Para seus pais, o desejo se revelava um enigma ao qual não poderiam responder. A saída encontrada foi a fobia, mais precisamente a substituição do pai pelo significante cavalo. Foi necessário para o pequeno Hans encontrar uma suplência ao significante Nome do Pai, que pudesse incidir como castração.
A neurose infantil, o sintoma neurótico em uma criança, pode se estabelecer quando a criança se depara com impasses dessa ordem e, nesse sentido, estaria possibilitando ao sujeito encontrar uma resposta ao enigma do desejo do Outro. No atendimento de crianças, observamos que, embora doloroso, esse é um custo com o qual ela decide arcar. A criança está, nesse momento, tão implicada na “construção” da sua neurose quanto no desejo de encontrar saídas para a repetição incessante das manifestações do seu sintoma. De acordo com Silvestre M.[4] se a criança neurótica pudesse demandar alguma coisa, demandaria que a deixassem fazer sua neurose com tranqüilidade. É precisamente nesse ponto que, a meu ver, podemos conceber os destinos das análises com crianças.
Gostaria de finalizar observando que na etimologia da palavra destino encontramos o vocábulo composto “des-tino” que se refere à “falta de tino”, “falta de juízo” ou “desatino”. Isso me chamou a atenção. Consideramos a criança um sujeito ainda não responsável por seu gozo, porém através da análise ela deverá situar-se em uma posição ética de responsabilidade pela escolha da sua neurose. Isso me permite concluir que talvez os destinos favoráveis das análises com crianças devam partir de algum “desatino” que a coragem necessária a essa empreitada irá exigir dos analistas, e de seus pequenos analisantes.
Referencias Bibliográficas:
Freud, S. (1905) – Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em Obras Completas Ed. Standard, vol VII, Rio de Janeiro, Imago 1977
———— (1909). Analise de uma fobia em um menino de cinco anos. Em Obras Completas Ed. Standard. Vol X. Rio de Janeiro, Imago 1977
————(1918) Da história de uma neurose infantil. Em Obras Completas Ed. Standard, vol XVII, Rio de Janeiro, Imago 1977
Lacan, J. (1962-1963) O Seminário Livro 10: A Angústia. Jorge Zahar Ed., RJ, 2005
———-(1956-1957) O Seminário Livro 4: A relação de objeto Jorge Zahar Ed, RJ, 2001
Silvestre, M.: Mañana, el Psicoanalisis. Navarin Ed., Buenos Aires, 1987
Fevereiro, 2019
* Adriana Rezende Costa é psicanalista em Petrópolis – RJ, Membro de EPFCL e da IF-EPFCL Fórum Nacional Rede Diagonal Brasil (Petrópolis)
[1] Lacan, J. (1960/1998). Subversão do sujeito e a dialética do desejo. In: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, p. 813
[2] Gerbase.J: Atos de Fala. Associação Científica Campo Psicanalítico, Salvador, 2015 p.71
[3] – Lacan,J. (1969) Nota Sobre a Criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2003
[4] Silvestre,M.: Mañana El Psicoanalisis. Navarin Ed., Buenos Aires, 1987, p. 156