Luiz Andrade
É mais do que oportuno, é razoável e salutar, que agora nos debrucemos sobre as variações dos destinos da análise. Isso porque não nos bastam nem os artifícios da elasticidade técnica propalada por Ferenczi, nem a ajuda necessária da Bruxa Feiticeira, para acalmar nossas inquietações sobre a variabilidade no efeito de nossas análises e a curiosidade sobre seus destinos. Afinal, se os artifícios técnicos foram criados contra os pontos mortos das análises, em grande parte só serviram para mostrar os impasses próprios à natureza da experiência, como bem o demonstram os experimentos terapêuticos de Ferenczi.[1] Quanto à “metapsicologia da feiticeira”, embora sem ela não possamos dar um passo à frente, sua contribuição, em se tratando de “domesticar” a pulsão, é “pouco clara e pouco minuciosa”. Sob esse aspecto, ao reivindicar a cura das neuroses, a teoria está sempre correta, mas a prática, nem sempre. (ESB, 23, pp. 257 e 262).[2]
Isso não significa, porém que a análise seja um jogo em que se possa entrar impunemente de “peito aberto”, sem o saber da estrutura (OE, p.438).[3] Afinal, como diz Lacan, “o ato [analítico] fica ao alcance de cada entrada numa psicanálise”, ele “modifica o sujeito” (OE, p. 371), e é isso que se espera de qualquer análise. Quer dizer, a análise não é um rosário de interpretações metafísicas, nem uma mistagogia, nem o reino do inefável. Ela trata dos efeitos do significante, operando com o próprio significante (Sem. 24), buscando assim uma “metamorfose” que alivie o sujeito da dor (Sem. 13) da sua doença de falta-em-ser, pois, afinal, é disso que o neurótico padece.
E, no entanto, desde os primórdios os analistas se indagavam sobre a eficácia da análise e sobre os meios para conseguir seus fins. Ferenczi, esse atormentado que Freud enalteceu pela originalidade e riqueza de talentos, (OC, III, p.3237),[4] passou a vida pondo do seu, na vã tentativa de encontrar saída para os impasses da análise e seus fracassos. O próprio Freud, mesmo reconhecendo que uma análise levada a termo produz um sujeito inédito (ESB, 23, p.259), mostra-se cético quanto ao seu alcance, reconhecendo seus limites e chegando a afirmar que a experiência não mostra uma diferença tão radical entre uma pessoa analisada e outra que não o foi (ESB, 23, p. 260).
Lacan, por sua vez, não mediu esforços para produzir uma teoria sobre a técnica e sobre a essência do ato analítico, reconhecendo a importância do desejo do analista e de sua posição como novo objeto [a], suporte da transferência [sujeito suposto saber], sem descuidar o lugar da eficácia do sujeito, seja na sua demanda de ser em falta, seja enquanto saber falado que goza com seu corpo, mesmo que não o saiba.
Ao olharmos diacronicamente os passos sucessivos de sua teorização sobre o fim de análise e seus ganhos, nos damos conta dessa quase obsessão de Lacan em isolar o cerne de uma cura e de sua eficácia para além do ganho epistêmico e seus efeitos terapêuticos. Com efeito, desde o poder da palavra plena como solução (1953)[5], passando, em aparente contradição, à impotência da fala na sua incompatibilidade com o desejo (1958)[6], erigindo o objeto “a” como ponto final da travessia da fantasia e experiência de dessubjetivação (1967. OE, p. 257), até chegar, enfim, aos novos poderes da fala revelados pela alingua (1972-73. Sem. 20), à identificação ao sinthoma (1976-77. Sem. 24) e à satisfação como fim (1976. OE, p. 568), o que busca Lacan senão dar conta do destino da análise e seus efeitos no registro do desejo, da fantasia, ou do gozo? Afinal, não é por isso que o passe foi imaginado, como tentativa última de dar conta de um processo que, se levado in extremis, poderia revelar até onde pode chegar uma análise e do que ela é capaz de produzir?
Sejamos modestos, porém. Já nos bastam as lucubrações dos nossos deciframentos. Limitemo-nos aqui a pensar nos nossos neuróticos, que nos procuram como sujeitos da dor, às voltas com as agruras impostas pela sua condição de seres de desejo, cuja falta-em-ser compromete seus modos de gozo, sem que eles saibam como se haver com esses efeitos de significante. Que final de análise almejamos para eles? Que eles tenham pelo menos aprendido um saber o que fazer com seu mais gozar (a), quer dizer, que eles se façam ser por suas obras e seus amores, como aponta Lacan na sua Nota aos italianos (OE, p. 314). É por isso que eles nos pedem que tenhamos o seu coração, isto é, seu ser, como ponto de mira. Conseguir isso é um progresso para o neurótico, que nos chega reclamando de seu mal-gozar e do seu não-saber, mercê de sua falta-em-ser. Nessa situação, fazer-se ser, seja pelas suas realizações as mais efetivas, seja pelas realidades as mais cativantes, é um progresso e tanto, que uma boa análise pode oferecer. Afinal, como diz Lacan, “quando o analisante pensa que é feliz por viver, é suficiente”.[7]
Assim, para além das miragens da verdade haverá sempre a esperança de um pedaço de terra firme, como diria Kant, onde o desejo e o gozo podem se conjugar, onde, graças ao contingente, o possível pode se contrapor ao necessário. Dito de uma forma menos elaborada, mas não menos inspirada, existirá sempre o recurso de “um copo de mar para um homem navegar” (Jorge de Lima. Invenção de Orfeu). E, como diz o poeta, “navegar é preciso”.
Luís Andrade. – João Pessoa, 26/03/2019.
*Luiz Andrade é Psicanalista em João Pessoa, Membro da EPFCL, Membro do Fórum Nacional Rede Diagonal Brasil
[1] Ferenczi, S. Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1900
[2] ESB sigla que remete à Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,1975.
[3] OE = Outros Escritos de J. Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2003
[4] OC = Obras Completas de Sigmund Freud. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. Tomo III.
[5] Lacan, J. “Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse”. Écrits, Paris:Seuil, 1966. Pp.237-322.
[6] Lacan, J. “La direction de la cure et les principes de son pouvoir”. Ib., pp. 585-645.
[7] Lacan, J. Conferência na Yale University, 24.XI.1975