Marcia Polido
Final de análise: o que se pode esperar?
A resposta a essa pergunta depende, porque em se tratando de psicanálise, que é prenhe de singularidade, não temos modelos de entradas e saídas, cada um o faz à sua maneira. Porém, tirando a prova dos noves, parece-me certo dizer que os que procuram uma análise estão imbuídos do desejo de se livrar de algum mal-estar, causador deinfelicidade, e creditam, tal como uma miragem, ao analista,a posse da chave que abrirá a porta de acesso à felicidade ou, pelo menos, a uma harmonia para que viva mais em paz.
A psicanálise não nos oferece garantia ou, no mínimo, a promessa que sairemos de processo, por muitas vezes longos, curados de nossas feridas e felizes, após um caminho cheio de desvios e desvarios, por tantas voltas e revoltas com as palavras que deslizam, que contam e recontam histórias. Ou seja, o analista recebe a demanda, mas de sua boca resta o silêncio, nada promete, conforme Lacan indica no Seminário 7.(LACAN, 1988, p. 350 e 351)
Eis, portanto, uma demanda de destino incerto. Quem pode prever o que surgirá dessa relação transferencial? Uma pessoa feliz ou pelo menos em menor sofrimento? Um analista? Talvez sim, talvez não. Masé justamente a falta de garantia que sustenta a análise e cada sujeito faz a escolha de seguir adiante ou não.
Quanto à ideia da felicidade, incentivo à procura de uma análise, parece-nos, a princípio, algo deveras transparente e de entendimento corriqueiro, o que é um equívoco carregado de imaginação. A felicidade, além de ser um quadro que cada um pinta com as cores que lhe são próprias, é colocada sempre em termos utópicos, ou seja, fora do alcance de nossa mão. Freud, em O Mal-estar da civilização(1930),afirma que não devemos desistir de empreender esforços para realizar o programa de tornar-se feliz, ainda que não seja alcançado. Programa que, nos tempos atuais, ganha contornos dramáticos que o elevam ao estatuto do dever, constituindo-se num fardo a ser carregado. Por exemplo: o corpo, julgado pelos padrões estéticos, pode ser motivo de exclusão do portal do paraíso sem nenhuma chance de retorno.
Se a felicidade pode ser considerada como a realização de todos os desejos, tem na linguagem a sua barreira, portanto, é uma busca e não um encontro inscrito no horizonte.
Lacan, apoiado nas suas concepções sobre o desejo do analistadiz que toda análise, se chegada ao fim, podeproduzirum analista mesmo quando o exercício da profissão não esteja nos planos do sujeito.
No texto Nota Italiana, Lacan destaca o entusiasmo no final de análise. “Se Ele (o analista) não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance.” (LACAN, 2003, p. 313).Então, sem entusiasmo não há analista e o interessante é que o entusiasmo é antecedido por um processo de quedas das identificações que sustentam a imagem narcísica. Ou seja, termina-se uma análise sem nada de glorioso nas mãos, mas da posse de um saber inconsciente sobre a falta de objeto que lhe permite se colocar no lugar de analista para um outro e que impulsiona o entusiasmo não só em relação ao passe, mas por certo, em relação à vida.
Se não existe modelo de término de análise, o entusiasmo a que Lacan se refere também não tem padrão que o determine. Cada qual, caso o entusiasmo lhe ocorra em função do esvanecimento do Outro, terá o seu na medida que lhe couber e a ele dará o destino que escolher. Portanto, não hánada que beire a uma idealização de final de análise. E sempre é bom lembrar que Freud, em Análise terminável e interminável (1937), situa os analistas no campo dos homens comuns.
No entanto, levar uma análise até o seu final produz mudanças, ou seja,uma espécie de libertação de amarras que engendramosna nossa constituição como sujeito. Assim, as horas gastas em contas de perdas e ganhos como uma espécie de avaliação da vida,deixa de ser uma conta insolúvel por decair de todo seu valor. As certezas ferozes e a estabilidade de dogmas que engessam o pensamento podem dar lugar a interrogação que instiga e gera interesses pela vida e algo dito hoje pode não valer para o amanhã. O viver condicionado pela partícula “se” contém os passos e decisões. A melhor escolha não é dada a priori, as escolhas são as possíveis para cada momento. As lembranças vivas e as esquecidas nos escaninhos da memória serão partes da história de uma vida onde conquistamos o lugar de protagonista e não mais serão carregadas como um fardo. As questões enigmáticas sobre o sentido da vida deslizam em formas, sons e cores, e se não há resposta, há o que se fazer com elas.
Isto posto, não há como dizer que a análise promove o encontro com a felicidade, mas, talvez leve à crença que a parcialidade do prazer em viver pode trazer felicidade. Ao final de uma análise, não há como costurar o furo advindo da das Ding, antes tão ilusoriamente recoberta, mas é justamente por essa fissura que a vida alcança, de acordo com a inspiração e invenção de cada um, o poder de movimentar-se em direção àquilo que a faz valer.
Referências Bibliográficas
LACAN, J. (1959-1960). Seminário 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.
FREUD, S. (1930) Mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Vol 18. Trad. Paulo César de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. (1973). Nota Italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras completas. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
[1] Psicanalista em Aracaju, membro do Projeto Freudiano, Membro da EPFCL, Membro do Fórum Nacional Rede Diagonal Brasil e da IF-EPFCL.