Marcia de Assis
“Não-todo ser falante pode autorizar-se a produzir um analista. Prova disso é que a análise é necessária para tanto, mas não é suficiente”[1].
J. Lacan
Ao propor o termo (des)enlace com essa grafia, busco falar de um dos destinos das análises que não é uma parada no meio do caminho, nem uma interrupção, mas o fim do percurso implicando uma nova amarração. Para dar ênfase a tal proposta, levanto uma questão: todas as cartas chegam ao seu destino? Se tomamos o termo destino como algo a ser encontrado em uma análise, o que não cessa de não se escrever[2], a resposta à questão será: há extravios, as paradas e interrupções durante a trajetória analítica. Vale ressaltar, ainda, que a análise não é uma produção de analistas em série, como a epígrafe anuncia, e assim, delimitar e precisar o fim de percurso ao qual este prelúdio pretende se dedicar, aquele que faz surgir um desejo e uma satisfação inéditos, uma posição inédita.
Uma análise é finita, a histoeria não é eterna. Oriento esta escrita a partir de tais palavras norteadoras. Ou seja, o percurso analítico tem um fim, pois se houve uma entrada, haverá uma saída. A psicanálise é uma experiência original, efeito de discurso, que levada ao seu ponto de finitude, permite o a posteriori, o testemunho de passe. Permite, quer dizer, há possibilidades, pode ocorrer, nada obriga. É uma escolha.
O laço analítico implica um des-enlace. O enlace transferencial é por conta do analisante, cabendo ao analista emprestar sua pessoa, se prestar ao lugar de semblante de objeto causa de desejo, ocasionalmente. Cabe ao analista o manejo da transferência, colocando a destituição subjetiva em pauta desde o início, tomando o dispositivo analítico em sua função cuja visada vai além dos efeitos terapêuticos. Há, do lado do analisante, a suposição de saber, envolvendo uma aposta num saber não sabido, contribuindo com a potência da transferência e cabe ao analista o manejo dessa suposição. Melhor dizendo, cabe posicionar o Inconsciente. O laço analítico oferece um parceiro que tem a chance de responder, a resposta vem do Outro, o Inconsciente. Ou, ainda podemos dizer desta maneira: a resposta vem em ato, fazendo valer o que perdura de perda pura e conduz ao encontro do real. Há um tempo de construção, trabalho de associação livre, onde se persegue o sentido do sintoma, sua verdade, que envolve várias voltas e ficções, até que se esbarre na inconsistência da verdade mentirosa. A associação livre sob atenção flutuante permite tangenciar o real que ex-siste, caso a tática do analista opere em sua função de corte. (Des)prendimento do sentido, ponto de parada da verdade mentirosa. Este momento denuncia um percurso, uma travessia. Um tempo de histoeria, onde um texto foi tecido, um poema se escreveu. Através da tagarelice, algo do real é alcançado, o sintoma disjunto da verdade, desenlaçado, é letra decantada, é real, desenlaçado do postulado transferencial. E “quando o esp de um sint não tem mais nenhum impacto de sentido, estamos no inconsciente real, fora de sentido”[3] Fim da questão posta na entrada, fim da espera transferencial, espera de interpretação, cessa a busca de sentido. A questão não mais será relançada, não há mais laçada que mantenha os amores com a verdade. Chegar a esse ponto implica um esgotamento da libido analisante, que encerra o amor endereçado ao saber, ponto de identificação ao sintoma, ponto além do terapêutico. O laço transferencial se desfaz. Isto basta para assegurar o fim da análise? Melhor dizendo, basta para que se declare que há analista? É preciso que se acrescente uma mudança na resposta de satisfação do sujeito. A miragem da verdade não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise, sem ela não há fim, pois “dar essa satisfação é a urgência que a análise preside” [4]. Não basta que uma análise tenha chegado ao fim para que haja analista. Se o analisante não é levado ao entusiasmo, é bem possível que tenha havido análise, mas analista, nenhuma chance. “Isso é o que o meu passe, de data recente, muitas vezes ilustra” [5]. Ou seja, há analista quando o sujeito analisado passou do horror de saber ao entusiasmo.
O entusiasmo, por minha conta e risco, é aquele que se apresenta no satis-fazer, assim grafado para ressaltar algo de uma certeza que se manifesta em ato, confirmando o entusiasmo como um afeto surgido quando tem fim a vã esperança que alimentava a impotência e a inércia que insistiam na miragem de completude. No entanto, vai mais além. É saber-se um rebotalho, retirando daí o entusiasmo ao aceitar uma nova posição no laço analítico. Proposta/aposta que parece fazer ecoar a afirmativa de Lacan – convém que surja o desejo do analista para que “seja possível o trabalho ali onde tentamos levar as coisas além do limite da angústia” [6]. Além do limite da angústia, além do horror de saber, surge um desejo inédito, resto da operação analítica. Se o termo da transferência é uma resolução e não uma liquidação, o seu produto, com efeito, poderá ser o surgimento de outro desejo, inédito, sustentando novos laços. Eis o (des)enlace analítico, uma nova amarração.
Referências Bibliográficas:
LACAN, J.: (1962-63). O seminário, livro 10: a angústia. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2005
LACAN, J.: (1973). Nota Italiana, In. Outros Escritos, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003
LACAN, J.: (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, In. Outros Escritos. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003
SOLER, C.: Lacan, o inconsciente reinventado, Cia. de Freud, Rio de Janeiro, 2012
Fevereiro de 2019
* Psicanalista em Niterói, Membro de Escola, membro da IF-EPFCL/ Fórum Nacional da Rede Diagonal Brasil
[1] Lacan, J. Nota Italiana, in Outros Escritos, JZE, RJ, 2003, p.312
[2] Mucida, A. Prelúdio: Responsabilidade subjetiva e destinos das análises. IV Colóquio FNRDB
[3] Soler, C.: Lacan, o inconsciente reinventado, Cia. de Freud, RJ, 2012, p.86
[4] Lacan, J.: Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, in Outros Escritos, JZE, RJ, 2003, p.569
[5] Lacan, J.: Nota Italiana, in Outros Escritos, JZE, RJ, 2003, p.313
[6] Lacan, J.: O seminário, livro 10: a angústia, JZE, RJ, 2005, p. 366